domingo, 18 de março de 2018

O pensamento binário e suas consequências para a vida na cidade

O ser humano é um ser que pensa por distinções. Bem e mal, vida e morte, masculino e feminino, luz e escuridão, branco e preto, frio e quente são conceitos que nos ajudam a processar a enorme complexidade das informações que registramos do mundo ao nosso redor e tomar decisões baseadas neles. A partir de sinais como sons, cheiros, imagens e sensações físicas do ambiente avaliamos, por exemplo, se há riscos à nossa integridade física, se queremos permanecer ali, quem são as pessoas em quem podemos confiar, etc.

Partindo de um princípio parecido, criamos computadores, celulares e outras programadas para processar qualquer coisa em pela comparação dos dígitos 0 e 1. É um sistema reage aos dados computados da seguinte maneira: primeiramente procura-se dividir um problema complexo em partes menores inteligíveis para então dar-lhes respostas adequadas e juntá-las novamente, chegando a uma solução final. Toda tarefa exigida a um processador, seja exibir uma imagem em uma tela ou executar um arquivo de áudio, precisa ser convertida em perguntas simples onde as únicas respostas possíveis são termos exatos: sim ou não, 0 ou 1.

É notável o desejo humano de conseguir lidar suas questões mais complexas dessa forma prática e confiável. Na sociedade contemporânea isso pode ser percebido na forma com que cientistas sociais, gestores públicos e estudiosos em geral, seguindo essa concepção racionalista/binária, precisam traduzir questões como bem-estar social e saúde mental em termos palpáveis e exatos, como o IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, taxa de suicídios, densidade populacional e tantos outros números com os quais se pode fazer operações. No entanto é precisamente esse reducionismo e essa concepção analítica da sociedade um dos fatores que causam o sentimento de alienamento responsável por vários dos dilemas subjetivos enfrentados pelo homem moderno. O binarismo não consegue, nem conseguirá, abarcar a complexidade das questões existenciais e subjetivas humanas que precisam ser levadas em conta ao projetar espaços. Portanto, é necessário que o arquiteto tenha consciência que entre os extremos existe todo um espectro de possibilidades e sutilezas que deve ser levado em conta para que se crie uma cidade mais sensível às reais necessidades humanas.

Roupa e arquitetura

      Roupa e arquitetura são dois fenômenos humanos que têm muito em comum: surgem da necessidade de proteção contra as intempéries da natureza, cuidando da segurança corporal de quem as usa, demarcam limites sociais, restringindo ou não a quantidade de informações que uma pessoa ou grupo expõe aos outros, e refletem os valores socioculturais e a posição social de quem as idealiza e usa.

       Aqui surge uma diferença fundamental: uma peça de roupa, uma gravata, por exemplo, é usada por um único indivíduo em um dado momento e em um certo contexto, adquirindo significados diferentes se ela for usada em uma favela ou em uma sala de reuniões de uma empresa. Um prédio comercial apesar de ser construído para servir mais adequadamente a interesses de certos grupos do que outros e refletir determinadas ideologias em sua arquitetura, vai reunir no mesmo espaço uma grande heterogeneidade de indivíduos, desde executivos de terno e gravata a seguranças e faxineiros em seus uniformes de trabalho. Neste caso a leitura de um mesmo lugar, de uma arquitetura, difere de acordo com o indivíduo que a frequenta, de seu lugar na sociedade e suas visões. Já a leitura da roupa, independentemente da individualidade de quem a usa, vai ser determinada pelo local e o contexto (a arquitetura) em que é usada.

sábado, 17 de março de 2018

Animação Cultural - Vílem Flusser

        O texto de Flusser por meio de uma anedota absurda e, por vezes, irônica, propõe uma reflexão sagaz acerca da grande dependência da humanidade em relação aos objetos para executar suas atividades, por mais simples que sejam. A presença dos objetos é tão imanente nas sociedades contemporâneas que é difícil de se tomar consciência da presença dessa natureza artificial, moldada segundo as necessidades humanas, e perceber a profundidade de sua influência na sociedade e na vida psíquica das pessoas.
        Durante a maior parte da sua história os únicos artefatos que os humanos possuíam se resumiam a uma pequena coleção de ferramentas de pedra, madeira e ossos de animais que atravessou milênios sem sofrer grandes modificações. O corpo dos caçadores-coletores era muito mais exigido e, por consequência, muito mais habilidoso em relação ao dos humanos atuais para realizar tarefas as mais diversas possíveis como correr atrás de gazelas, confeccionar pontas de lança de pedra à mão, andar silenciosamente pela selva e perceber ruídos mínimos no ambiente, o que poderia ser a diferença entre a vida e a morte. Consequentemente, a forma com que esses humanos antigos (idênticos a nós biologicamente)  percebiam o mundo é imensamente diferente da percepção de um habitante de uma grande cidade no século XXI, que depende veículos que não as próprias pernas para se locomover em ambiente controlado rigidamente por semáforos, placas e convenções de transito, e precisa lidar com uma quantidade tão grande de informação em uma velocidade tão rápida, que necessita de artefatos como papel, caneta, computadores e smartphones para auxiliar o cérebro a processá-la.
        Nessa perspectiva histórica, é possível perceber como a dominação da humanidade pelos objetos já acontece há tanto tempo que um manifesto assinado por uma mesa redonda exigindo seus direitos pode não ser tão absurdo assim...